Cantar e beber as letras...
Há uma terra onde as letras contam. Contam e mais que isso...São tão importantes como a água, aliás... São a própria água, porque nessa terra as palavras bebem-se aos goles. Cada letra é um gole que não mata a sede mas há quem junte letras como se num copo e sacie essa sede com várias palavras, frases e até de pequenos textos. Há ainda quem as beba por prazer, e quem se satisfaça simplesmente por molhar os lábios.
Há nessa terra imensos lagos de letras, rios e mares, salgados ou doces.
Letras...Uns tiram-nas da torneira, outro, compram-nas engarrafadas, ao litro. Há letras em lençóis, por baixo dos nossos corpos, em tapetes por baixo dos nossos pés...E há letras que simplesmente caem do céu, dispersas como gotas, sem sentido aparente. Aparente ao princípio. Se formos pacientes, veremos como se organizam e tornam coerentes, como se juntam em pequenos regatos com muito para dizer.
Há quem viva só porque as letras ali estão, para serem bebidas. Alguns há que ganham a vida a juntar essas gotas. Alguns são capazes de transformar um orvalho matinal num riacho fresco em pleno verão. Alguns, só alguns, poderão domar um oceano tempestuoso, dar a volta ao mundo numa jangada feita de frases. Porque os homens são feitos de letras, mas não são capazes de se ordenar em palavras. Uns são apenas vogais, definem-se em cinco pancadas, sem sequer mexer a língua. Outros, consoante, se são sofisticados e sem complexos vernaculistas, usam o «capa», o «dabliu» e o «ipselon», ou, os mais apegados à tradição, que tanto se lêem com «cê» de cão, como com «sê» de sapato. E ainda os que se atrevem a misturar os estilos, a fazer sentido, a tentar descodificar os homens, a dar vida às letras, para que as possam beber.
Há uma terra em que as letras contam, porque são necessárias como o ar, são contadas, são gente, porque as respeitam. Cada palavra é um membro com veias e sangue. Há quem as junte num corpo e as veja crescer e ser pessoa. Pessoas. Há quem tenha orgulho nas palavras que escolhe para o corpo, e quem se contente com duas pernas, dois braços, um par de calças e uma camisola para os cobrir. Há quem seja letra, e quem queira ter letra.
Há vezes em que fechamos os olhos e o negro se torna letra. Outras há em que os sonhos são palavras, e, quando acordamos, de olhos bem abertos, a realidade são letras. Porque o sonho é possível, como a fábula é possível, por palavras, no escuro. Porque a realidade é inevitável, como os homens são inevitáveis, letras dispersas, na claridade. Há uma terra em que o escuro e a claridade são um só, pois as letras são água e ar. Em que o sonho e os homens são palavras, porque um é aquilo que os outros querem, e as letras são o elo. Nesta terra nunca ninguém morreu de sede. Nesta terra respira-se ar fresco. Pois se cada página é um rio, e cada linha uma brisa.
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